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Pecados resumidos: café

  • Foto do escritor: Jimi Aislan
    Jimi Aislan
  • 24 de fev. de 2019
  • 3 min de leitura

Atualizado: 24 de fev. de 2019


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Poucas coisas são capazes de sintetizar tantos pecados e desnudar nossa alma mais rápido que um café. Sim, ele não é simplesmente um vício. Café é um estado de espírito. Uma abreviação dos sentidos, revivido a cada pequeno gole. E é ali, no espaço que existe entre o fundo e a borda de uma xícara, no queimar dos dedos no copinho plástico, no sentar solitário em uma cafeteria, que se pode encontrar uma oportunidade cotidiana de entender a essência das nossas humanidades.

Isso porque o ato em sim agrega possibilidades despretensiosas. A cena é simples. Local de trabalho. Turno apertado. O teclado embaralhando sinuosamente o alfabeto. Os olhos pesando, enquanto a gente gira o ombro à espera de um alívio. A cabeça pende para o lado, com os olhos fechados, tentando estalar o pescoço e, automaticamente, vem o desejo de parar. Hora de tomar um cafezinho. Não é apenas uma pausa merecida, mas uma entrega à preguiça, um momento escorado, deleitando-se na infinidade que durar uma dose. É o abandono do mundo exterior.

Essa introspecção muitas vezes não é perseguida, mas parece nos sortear. Basta sentir o cheiro de um café passado e a inveja acompanha. Tem pessoas que nem gostam de café, mas se esbaldam no perfume que fica no ar.

Um café pode pedir um cigarro, uma conversa acalorada, uma troca de olhares silenciosos, uma torta, um salgado, uma mesa farta, um livro. Se o dia está frio, ele pode ser acompanhado de duas mãos em busca de aquecimento ao redor da caneca. Se faz calor, pode ser servido gelado. É democrático e inclusivo por natureza, aceita leite, chocolate, licores, canela, chantilly. Pode ser simples e vir puro e sem açúcar. Pode ser requintado e ser renascentista num latte art. Pode ser sádico e vir rodeado de Nutella. Nunca limite um café.

Nos olhos, no olfato, no paladar, no “hummm” pronunciado mentalmente ou gemido inconscientemente alto, no ardor vaporizado sobre a xícara, a sinestesia é inata ao café. Assim como sua forma de comunicar essa união. Tornamo-nos voyeur através do café alheio (há pessoas que roubam o café dos outros). E como nos envaidece trocar olhares com o anônimo que passa apressado sem um copinho na mão.

Começar o dia sem café é o mesmo que não ter acordado. Ele não ativa neurotransmissores blábláblá. Ele simplesmente nos faz outra pessoa. Jogue essa carcaça fora antes de um café, mas depois dele, como diria Balzac, “as ideias marcham como um exército”. Cria-se uma vontade de conversar com Sócrates e, na falta dele, com nossos próprios pensamentos. Flertamos com uma ilimitada sabedoria, por vezes escondida na rotina.

Café é prova de amor. Ofereça café e verá que um riso desconcertado nasce no outro. Leve café na cama e sentirá a força de um sentimento traduzido no riso sincero de quem abre e fecha os olhos tentando acreditar. Se o amor se traduz em atos, esse momento simplifica sua presença verdadeira.

Do alto do nosso livre-arbítrio, é gostoso poder escolher o direito de possuir em nós um espaço entre o sagrado e o profano; uma zona neutra entre o prazer solitário e a confraternização; um momento íntimo, entre a distância do aroma e a intensidade do paladar. Um vício permitido. Aquele lugar em que ruminamos nossos pensamentos, sentados em silêncio numa cafeteria, escolhendo encontrar o ponto de equilíbrio na imagem refletida no interior de uma xícara de café. Num momento intimista, onde nos encontramos mais sinceros, desnudados socialmente e com um meio sorriso no rosto. Aquele sorriso safado de quem resumiu num único instante os próprios pecados e se entregou ao prazer de um bom café.

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